20 junho 2010

UMA ESPIRITUALIDADE NIETZSCHEANA?

GLEDSON SOUSA

I
Nunca um filósofo viveu tão intensamente seu próprio pensar quanto Nietzsche, realizando a perfeita fusão entre vida e obra, apesar do seu final dramático. Dos dias nascentes da convivência com Wagner até chegar aos dias eufóricos de Turim, onde em poucos meses produz obras de um poder estupendo (O Anticristo, O Crepúsculo dos Deuses, Ecce Homo... ), seguidos dos dias de loucura que se prolongam até sua morte, nunca um filósofo vivera tão intensamente seu próprio pensar, nunca se vivera tão passionalmente a busca da verdade e da transformação espiritual quanto Nietzsche. O que procuraremos mostrar aqui é que a atitude nietzscheana preconiza o ambiente espiritual de nossa época e se coloca na vanguarda do espírito, vivenciando um universo que de alguma maneira já havia sido vislumbrado anteriormente, mas que em Nietzsche se livra de sua capa religiosa e cristã para ganhar as asas do além do homem.

Não é possível haurir, de Nietzsche, algo que seja semelhante a um sistema, filosófico ou espiritual, porque antes de tudo ele foi um filósofo assistemático; reconhecia na sistematização a incapacidade de garantir para o pensar o poder do devir. Mas ele é o epicentro de uma crise de transformação subterrânea da consciência européia, sua experiência mais radical e profunda, de onde podemos , aí sim, tirar um rol de experiências e atitudes de transformação, além de um pensar que fundamenta essa fusão entre vida e obra. O que importa em Nietzsche não é somente o que se enuncia, o que se articula verbalmente desde sua toca do pensar, mas o que se expressa além do pensar consciente, aquilo que é uma transfiguração das forças do inconsciente e que trazem à tona o pensar trágico, dionisíaco.

Pensar Nietzsche a partir do dionisíaco é estabelecer um anel em torno da vida e do pensar, de modo que o filósofo come sua própria cauda: o pensar que começa em O Nascimento da Tragédia termina nos bilhetes da loucura onde ele assina de Dionisio para Ariadne. Mas essa trajetória não é simplesmente o anunciar dos ecos da loucura até a loucura plena; ela é, antes de tudo, a concretização de forças que se expandem de dentro para fora numa ânsia plena de transformação.

Seguindo o curso do próprio pensar nietzscheano, podemos dizer que Nietzsche, enquanto filósofo, é equivalente a Ésquilo, no sentido de ser um pensar que se faz instintivamente, intuitivamente, como o próprio Nietzsche falava de Ésquilo comparando-o com Eurípedes, para quem o poetar era resultado de suas inclinações intelectuais e não de seus instintos artísticos. Por isso que ele é o filósofo trágico por excelência, porque nele as contradições se desenvolvem livremente, seguindo o curso de sua natureza transformadora e dialética, instintiva mesma.

Sob os passos de Nietzsche, tentaremos construir uma linha de continuidade espiritual entre os hiatos de seu pensar e os abismos de sua vida, para encontrar assim os ecos de uma espiritualidade nietzscheana.


II

É preciso ter cuidado com as palavras; tanto quanto o pensar, tanto quanto os hábitos e todas as predisposições adquiridas pelo homem ao longo de milênios, as palavras vêm revestidas de sentido adquirido, de modo que é preciso despi-las de suas roupagens , é preciso deixá-las nuas para que possamos assim aproximar-nos de sua verdade. Isso para lembrar que palavras como espiritualidade, alma e psique, que frequentemente aparecerão no texto, estão nuas, ou seja, é preciso despi-las de sua conotação cristã para serem devidamente compreendidas.

É necessário que, em retrospecto, passemos por alto o que era a espiritualidade emergente na Europa de Nietzsche: em primeiro lugar, havia um ateísmo crescente, teoricamente derivado de fontes variadas - seja dos sensualistas do sec. XVIII como Condilac e Helvetius, ou seja derivado da chamada esquerda hegeliana, que congregava nomes tão díspares quanto Feuerbach, Bruno Bauer, Marx e Max Stirner, sem falar no ateísmo Schopenhauriano. Em todos eles o ateísmo aparece como uma convicção teórica, uma constatação filsófica: deus fora um episódio voraz da história da consciência humana, mas a tocha do iluminismo viera tirar o homem do seu sono sombrio. A ratio seria a guia segura, a qual tiraria o homem dos becos escuros da história. Stirner, numa crítica antropológica radical, dizia que era preciso o homem se livrar de seus fantasmas culturais e conhecer a si mesmo para conseguir se realizar. Nesse aspecto, de que o homem é que faz a si mesmo e que a única coisa concreta existente é o seu si mesmo, o único e ele mesmo, ainda que seja uma idéia derivada da alienação hegeliana, a idéia de Stirner é próxima da crítica de valores Nietzscheana.

A única diferença, e é uma diferença radical e fundamental ao mesmo tempo, é que a experiência da negação de deus por enquanto fora uma experiência teórica, de negar um postulado - deus existe - por outro postulado - deus não existe -, sendo que permanecia intocado o núcleo fundamental da civilização cristã, seus valores morais. Nietzsche será o primeiro a colocar a importância de se negar não só ao deus cristão, mas aos fundamentos psicológicos da cristandade, à sua fundamentação moral. E para isso realizará a mais radical crítica de valores já empreendida.

O ateísmo do século XIX era uma expressão tardia das idéias renascentistas de devolver ao homem seu papel no universo, mas se desenvolvera num universo teórico-psicoló gico marcado pelo cientismo positivista que por sua vez vinha inserido de idéias cristãs. Os conceitos de igualdade da sociedade burguesa bem como o conceito de evolução darwiniana são imbuídos de valores cristãos: a democracia é uma expressão direta da igualdade cristã, e a idéia darwiniana de uma evolução que é progresso, aquisição para os melhores fins é, como toda idéia de progresso, cristã até a medula, é Santo Agostinho na Cidade de Deus, é Joaquim de Fiori com as idades do pai, do filho e do espírito santo. Ao mesmo tempo que bandeira do iluminismo, o fundo raso do ateísmo do século XIX serviu para diminuir o homem, reduzí-lo a coisa, transformando- o no objeto perfeito para o uso do capitalismo em expansão.

Ao mesmo tempo, a psicologia do inconsciente começou a fazer progressos incipientes, bem como se expandiram as doutrinas esotéricas ( a teosofia, o martinismo, etc,) numa demonstração clara que a sociedade cristã falira não só socialmente mas principalmente como produtora de valores, de novos valores

O esoterismo e o ocultismo de fins de século resgatavam ao homem sua dignidade, sua grandeza, que fora roubada pela revolução industrial e pelo ateísmo, tão apressado que fora de matar deus que esquecera de não assassinar também o homem. Modelo do super-homem nietzscheano poderia ser Zanoni, personagem homônimo do romance ocultista do escritor inglês Edward Bulwer Lyton; Zanoni é um ser misterioso que vive a alguns milênios, tem sua própria moral ( vai aos teatros, bebe, ainda que não se embriague, provoca indiretamente a morte de um inimigo, desiste da imortalidade para se casar com uma cantora de ópera e morre na guilhotina, na época da revolução francesa ) e que sofre com a solidão de sua imortalidade.

Sei que Nietzsche não leu o Zanoni, pelo menos não há conhecimento disto, mas tanto o Zaratustra quanto Zanoni são próximos em temas que eram caros a Nietzsche: a solidão do homem superior, o desprezo pelas massas, a coragem das grandes tarefas espirituais, o risco, a tragédia, e expressam aquilo que deveria ser uma convicção íntima de uma elite da inteligentsia europeia, a de que o homem é responsável pelo próprio destino frente a si mesmo e frente a eternidade, e que fazer o próprio destino é arriscar na solidão.

Nietzsche compreende como ninguém que é preciso ir aos subterrâneos de si mesmo e da história para desenterrar de si os fantasmas de deus e de tudo o que obstacularizaria a libertação do homem. Ele reunirá todas as armas para provar o niilismo do cristianismo; não se trata simplesmente de negar teoricamente o deus cristão e seu credo: é preciso destruir os fundamentos psicológicos que permitiram a criação do deus cristão, é preciso dar à realidade, à natureza, sua própria face, se quisermos compreender a vida em sua dimensão correta.

A atitude de Nietzsche, seu esforço para se livrar dos valores cristãos, niilistas, é única: é como se a história o tivesse como ponto de passagem, e ele fosse a vanguarda, voluntária ou não, de um mundo por nascer: Nietzsche antecede a psicanálise com sua visão dos processos inconscientes e de que a moral esconde valores que em si são imorais; a diferença maior estaria na forma terapêutica adotada por Nietzsche, que na realidade não é terapêutica mas maiêutica, pois visa a uma transformação total de si mesmo.

Ao mesmo tempo, com sua crítica da sociedade burguesa e da democracia, Nietzsche atinge o cerne moral do capitalismo, a sua apatia de valores, sua mercantilização da moral. Ao agir em defesa da terra ( o lema do Zaratustra é fazer da terra uma terra para o super homem ), Nietzsche também antecede, só que numa visão mais ampla, as discussões sobre ecologia e sobre a defesa da vida.

III

Não posso, e não devo, ceder à tentação de transformar Nietzsche num digerível almanaque acadêmico para ser lido nas salas institucionais, nos debates onde homens de olhar arrogante dizem aquilo que Nietzsche provavelmente não pensara. Essa é a pior imagem que se poderia fazer de um filósofo que não foi um erudito, um scholar, mas sim, antes de tudo, alguém que sofreu com a busca da verdade, de sua verdade, bem como sofreu com a luta por uma transformação espiritual.

Sei que abandonando a severidade da forma acadêmica, as citações, a procura coordenada de uma imagem e de um discurso que se mostre acadêmico estarei cedendo terreno à subjetividade, ou ao que se pretende subjetividade, pois , na realidade, como separar os diferentes fios que formam o tecido da vida, ainda mais quando se é uma vida como a de Nieztsche ? Sei que cedendo à literatura, estarei descaracterizando a tentativa teórica. Mas também sei que é impossível compreender Nietzsche sem vivenciá-lo por dentro, sem procurar compreendê-lo dentro de sua perspectiva, sem abandonar a segurança da ratio e compreender que pensar é fazer, pensar é agir.

Não para assimilar a experiência nietzscheana à minha própria, não para me tornar um discípulo, Nietzsche-Zaratustr a já havia alertado sobre a inutilidade da crença ( e o que é um discípulo senão alguém que crê ? ) quando disse “ Não tínheis procurado vós mesmos; então encontrasteis a mim. Assim acontece com todos os crentes, por isso a fé tem um valor tão insignificante.” Não, a leitura de Nietzsche servira para apontar a busca de um caminho próprio, um caminho para a formação e libertação de si mesmo, porque Nietzsche aparecera como o filósofo de uma experiência de vida e não de uma teoria de vida.

Não há como permanecer indiferente a leitura de livros como o Also Sprach Zaratustra ou La Gaya Cienza, justamente porque Nietzsche, a par de elaborações teóricas que são surpreendentes, fala uma linguagem simbólica, e o símbolo é o elemento atemporal e universal da linguagem, de modo que ele fala ao nível de uma experiência que é possível a todos, no plano psíquico. Mircea Eliade dizia que “As imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidade do ser”, o que em Nietzsche vai se revelar, principalmente no Zaratustra, numa corrente simbólica que vem varrer a água estagnada dos velhos valores cristãos para mostrar a vida transvalorizada, poderíamos até dizer sublimada, sem corrermos o risco de parecermos excessivamente freudianos na interpretação da simbologia de Nietzsche.

O símbolo é inesgotável, mesmo em Nietzsche. As elaborações teóricas, sejam de Freud ou mesmo de Jung, quanto ao simbolismo nietzscheano, podem mostrar uma das faces do pensamento e da orientação psicológica de Nietzsche, mas não esgotam outras possibilidades interpretativas. É impressionante quanto o Zaratustra se elabora em cima de metáforas e símbolos, como ele consegue reunir as aspirações de um pensamento revolucionário, prestes a reordenar o mundo, com o fluxo de imagens inconscientes, arquétipos, na apresentação de um outro universo de valores, na tentativa fundante de revelar um outro mundo, não um mundo além, mas a terrível imanência e devir deste mundo.

Todo criador sabe o quanto é difícil se situar entre os extremos da razão e do inconsciente, na criação ou elaboração de uma obra, e o Zaratustra é o exemplo perfeito, acabado, desse delicado equilíbrio. Se Nietzsche advogara a não existência de deus como uma premissa teórica para se libertar das amarras do niilismo cristão, do além metafísico, é no Zaratustra que ele vai expor isso não como premissa teórica, mas como libertação axiológica ( desculpem-me a pomposidade da expressão ) - e o exprime em símbolos, em imagens carregadas de metáforas. A obra se articula como um poliedro prismático onde a luz refletida sobre umas das faces reflete também sobre a outra, de modo que todas imagens se correspondem num dado momento e num dado plano. Há uma linguagem soberana, senhora de si, porque sabe que precisa da solenidade para abrir os olhos para o novo mundo que ela traz. De alguma maneira, por se articular sobre os valores do inimigo - o cristianismo - , a linguagem às vezes lhe é tão próxima na articulação dos temas, ao mesmo tempo que totalmente distante no horizonte moral. Numa aproximação grosseira e despreocupada, sem nenhuma intenção de ser um aporte teórico, há uma semelhança entre o Zaratustra e Les Chants de Maldoror, nisso de se utilizar de temas ou articulações literárias do universo cristão, seja para negá-las, como é o caso do Maldoror, seja para superá-las, como é o caso do Zaratustra, o que é coerente com o eixo de valores sobre o qual se articula cada um dos livros: a assunção do mal no Maldoror e a superação do bem e do mal no Zaratustra.

Um episódio do Zaratustra ilustra bem a dinâmica simbólica de todo o livro, é o episódio do pastor que Zaratustra encontra com uma serpente negra pendendo-lhe da boca; Zaratustra tenta, a todo custo, tirar-lhe a serpente da boca, mas não o consegue, então grita Morde, morde, arranca-lhe a cabeça, morde!, ao que o pastor obedece-lhe e arranca a cabeça da serpente e ele se transforma. Os componentes simbólicos do episódio são evidentes: a serpente é um símbolo por demais antigo para que fosse deturpado pelos exegetas de Nietzsche - ora representa as forças instintivas, as energias da natureza em livre manifestação - como a serpente Ófion no mito Pelásgico ou a serpente que rodeia o universo, nos mitos egípcios, ou as forças do inconscientes ( e não é o inconsciente a expressão das energias da natureza em nós ? ); no caso do pastor, a transformação ocorrida após cortar a cabeça da serpente talvez represente a transformação psicológica ocorrida após a assimilação do inconsciente, a incorporação das forças instintivas- naturais do homem. Na Índia, a serpente kundalini é a representação das forças criadoras na natureza e no homem, sendo que no homem é a própria energia sexual. O grande objetivo das correntes tântricas que advogavam uma yoga sexual (a prática do maithuna)- era a correta transformação da libido em energia criadora consciente - na linguagem simbólica, a ascensão da kundalini pelo canal medular, na sua mítica viagem de chacra em chacra; quem o conseguisse fazer se transformaria numa espécie de super-homem.

O Zaratustra sempre representou, para Nietzsche, um episódio culminante: no Ecce Homo ele alude ao fato de que era incapaz de ler oZaratustra e não chorar, tão grande era o impacto da obra sobre ele. Ao dissertar, ainda no Ecce Homo, sobre a gênese do Zaratustra , ele relembra do estado de transe ao escrever a primeira parte, como se tomado por uma revelação ou uma inspiração toda-poderosa que tomou conta dele. Ele sabia que, ao escrever o Zaratustra , estivera muito mais que simplesmente fazendo elaborações teóricas, ele sabia que o Zaratustra era a expressão do ápice de um processo espiritual em curso, ele sabe que abre as portas para um novo mundo, para uma nova compreensão da vida. Como expressão e sintoma de um processo espiritual em curso é que o Zaratustra é tomado de símbolos, metáfora e mitos. Nietzsche intenta criar um novo mito, do super-homem sem deus, de uma força totalmente nova num universo já concebido sem deus.

Pode-se dizer da transformação espiritual que terá sua culminância na época do Zaratustra , que ela vinha em curso desde a infância. Jung denominará esse processo de transformação espiritual de individuação, a tentativa do indivíduo de descobrir e assumir a própria face, e seguindo uma orientação Nietzscheana, mas não só Nietzscheana - já que essa é uma distinção comum a todas as escolas esotéricas -, afirma que esse processo só acontece com pouquissímas pessoas, mas que é um processo natural, instintivo mesmo. Desde a infância que Nietzsche procurará se afastar da massa, procurando encontrar os valores que lhe correspondam. O afastamento da família também é consequência desse processo de mudar sua primeira natureza para encontrar sua verdadeira natureza ou segunda natureza, o que significa mudar radicalmente a própria face cultural e psíquica. Sua escrita será sempre arena, palco e laboratório, onde luta - consigo mesmo e com os outros -, onde ele aparece, tentando mostrar sua face e onde ele faz experiências consigo mesmo, se transformando, se construindo.

Depois do apogeu, a queda: todo processo espiritual comporta um componente paranóico que é inerente ao próprio processo - não há como separar o real e o irreal na teia da subjetividade, há sempre o risco de se literalizar um conteúdo psíquico, o risco de se tomar o arquétipo pela sua forma. A lucidez consiste justamente em aceitar a ambiguidade própria da vida, a impossibilidade de realizações absolutas ou de proposições absolutas. Se a Paranóia é um delírio de interpretação, como dizia Karl Jaspers, o delírio Nietzscheano começa quando ele confunde o particular com o geral, quando, às forças que irrompem nele, não sabe reconhecer aí sua esfera subjetiva, mas acredita-se continente e conteúdo, acredita-se o próprio Dionísio e não seu servidor...

Se não dá para separar num processo aquilo que é início e fim, pois tudo é continuidade, não dá para separar a lucidez da loucura nietzscheana, ou melhor, não dá para separar a lucidez da loucura: loucura e lucidez são só pontos de vista de uma sociedade que precisa classificar os processos psíquicos para melhor controlá-los. A loucura nietzscheana é resultado de sua lucidez. Um ditado grego dizia : os amados dos deuses morrem cedo. A loucura de Nietzsche foi a sua morte.

IV

A aventura nietzscheana é uma tentativa de se libertar do absolutismo moral e religioso do cristianismo. Não foi a primeira tentativa nem a última. Ainda hoje, mesmo com o fracasso real da religiosidade cristã em dar respostas sérias às perguntas da vida, as bases sobre as quais a sociedade foi erguida é feita de tijolos cristãos: a igualdade e a democracia, pilares ideológicos da chamada sociedade democrática, são, em sua essência, resultado do evangelho do nazareno. Antes de Nietzsche outros pensadores já haviam tentado romper a malha do absolutismo cristão, e sabiam que só destruindo a base do cristianismo, o conceito de deus mesmo, é que poderiam quebrar o monopólio das consciências, característica principal do cristianismo. Seja repensando o conceito de deus e do universo, como Giordano Bruno, afirmando a pluralidade dos mundos, bem como a infinitude do universo, seja criando uma nova mitologia capaz de responder às necessidades psíquicas das almas de um novo mundo, como William Blake, Nietzsche já tivera antecessores: Pico de la Mirandola já pressentira a grandeza do homem, magos e alquimistas insistiam na capacidade de transformação do homem e dos germes da grandeza possíveis no humano, Da Vinci mostrara a genialidade também moral, acima de todas as expectativas, mas Nietzsche vai além ao solapar o solo fundante da cultura cristã. Caso singular é o de Blake: fundador de uma mitologia própria que se aproxima dos mitos da queda de Sophia dos antigos gnósticos, Blake, nos Proverbs off Hell, com sua elaborada linguagem aforística, expõe os subterrâneos da moral, como no provérbio Prisons are built with stones of Law, Brothels with bricks of religion. Blake também abomina a idéia cristã da separação entre corpo e alma, e não concebe uma redenção humana que não seja também uma redenção do corpo, com o corpo e para o corpo. Também é partidário de uma ética aristocrática, não da aristocracia de sangue, mas da distinção entre massa e indivíduo, como expressa no provérbio One Law for the lion & ox is opression. Mas como vislumbrar um mundo novo se não entrando em ruptura profunda com seu tempo, senão arriscando a solidão de criar novos mundos ? Como suportar a solidão da busca da verdade se não temos sobre nós a sombra de deus?

Essa é a experiência da ruptura nietzscheana: ele sabe que é preciso varrer com o pântano da idéia de deus, mas sabe também quão dolorosa é arrancar de si o solo sobre o qual se erguia os fundamentos não só de uma cultura, mas de toda uma história, de toda uma trajetória não somente do homem, mas da psique humana no caminho de seu crescimento espiritual.

É quase simbólico que Nietzsche tenha morrido em 19OO: 19OO é o ano da publicação de A Interpretação dos Sonhos, de Freud, bem como é o início de um século que, passo a passo, verá caírem por terra todas as certezas, todas as falsas esperanças de uma civilização que construíra seu edifício moral sobre terreno pantanoso, ao ponto de a civilização se ver ameaçada pelos poderes de seus próprios instrumentos, sem que o homem conseguisse determinar o curso de sua história. As promessas milenaristas, os discursos de salvação das religiões e dos partidos políticos revelaram sua impotência histórica, e hoje estamos frente a uma cultura e civilização que só sobreviverá se cada indivíduo agir como uma mônada responsável não só pelo seu destino, mas também pelo destino do planeta. Nietzsche tinha razão: não recebemos a vida de graça. É nossa contribuição para com a vida não só ajudar a mantê-la, mas defendê-la, transformá-la, para que não haja um além a nossa espera, mas que nossa terra seja ela a terra do além

V

Pode parecer contraditório falar em espiritualidade nietzscheana, já que o próprio Nietzsche procurou desfazer o encanto metafísico que dominou a filosofia durante séculos. Longe de nós querer imputar ao filosofo uma imagem que não lhe corresponda, muito menos uma imagem metafísica. Mas não se pode negar que há, em Nietzsche, um conjunto de atitudes frente a vida que tem a ver com uma busca pela “verdade”, ainda que essa busca tenha de ser entendida no sentido dado pelo próprio Nietzsche, de ir ao encontro da imanência e do devir.

Como agente de uma profunda transformação de si mesmo e do terreno filosófico onde constrói sua obra, o que sobra para seu discurso é pouco após tantas demolições por ele empreendidas (Rudiger Safranski). É pouco e é muito, ao mesmo tempo: pouco, das palavras gastas por milênios ou séculos de uso consagrado, pelas mesmas avaliações, pelo mesmo destino comum dado ao vocabulário, pelas mesmas atribuições de valor; e muito, pelas novas possibilidades que se abrem a partir de seu pensamento: é um mundo onde não há acaso nem propósitos ( La Gaya Cienza ) , onde a própria causalidade é julgada e descortina-se um universo de continuidade entre os seres e as coisas. Nesse sentido, Nietzsche é um continuador de Heráclito.

Se, ao falar de uma espiritualidade nietzscheana dou uma impressão de um Nietzsche metafísico, isso deve-se mais a falta de um vocabulário adequado ou a minha incapacidade de dar a imagem que quero. O que tem de ficar claro é que o universo vislumbrado por Nietzsche não tem nada a ver com o além metafísico ou cristão. Mesmo quando fala do eterno retorno, ele o concebe como uma possibilidade científica de repetição das mesmas condições de existência de um fenômeno com o mesmo quantum de energia em jogo. Só que para esse mundo falta ainda a visualização, a produção de imagens que lhe corresponda. Quando Nietzsche critica o conceito de causalidade no aforismo 112 do livro III de La Gaya Cienza, afirmando que ao invés de causa e efeito o que há é um permanente fluxo, uma continuidade entre eventos, mal vislumbramos o que isso representa, tão acostumados estamos aos conceitos da física que durante tanto tempo nos foram apresentados como verdade. Quando se fala numa reação química, p.e., se fala no início e no fim do processo, mas não há início e fim, há um fluxo permanente que leva a um desfecho, há transições, uma transformação que na realidade é contínua, não está separada por eventos distintos no tempo espaço, mas sim ocorre em fluxo. Entrevemos o que não há para nossa própria segurança, para nosso ordenamento do mundo. Todo nosso conhecimento atual é, portanto, ilusão. Nossos órgãos de conhecimento também estão viciados em procedimentos lógicos e percepções epistemológicas que falseiam o conhecimento, ou melhor, falseiam o conhecido, que no fundo permanece desconhecido.

A mesma crítica pode ser feita quanto ao conceito de corpo, ou do que é orgânico ou inorgânico: numa percepção orientada para o fluxo, para o devir, o próprio corpo é também inorgânico, já que nos níveis mínimo em que se estrutura o que há são elementos. O mais correto é dizer, como o fez Nietzsche num dos fragmentos póstumos: não há o inorgânico, e o próprio corpo só aparece como unidade, como mônada, no confronto com os outros corpos, quando precisa afirmar sua individualidade.

Quando no Ecce Homo Nietzsche diz que é dinamite pura, de alguma maneira tinha razão: as possibilidades abertas por sua crítica de valores levam muito além de uma mera crítica, mas exigem, na realidade, uma nova fundamentação do conhecido em perspectivas pouco imaginadas.

O Zaratustra é, em parte, a fundação imagética desse novo mundo, um caudal de metáforas e imagens que expressam um novo conteúdo espiritual, ausente de deus e do pecado, mas com inúmeras profundidades.

A espiritualidade nietzscheana é sem espírito, se imaginamos o espírito como ente, como unidade. Sejamos metafóricos, sejamos mitológicos: o espírito é um oceano comum e nossa efetividade só aparece quando a vontade de poder atua, transformando- nos numa gota de onde todo o oceano pode se refletir.

Há um aforismo de La Gaya Cienza, o de No. 124 do livro III que expressa a sensação de Nietzsche ao explorar o novo universo vislumbrado; ele se chama No Horizonte do Infinito, e diz “Deixamos a terra firme e embarcamos ! Queimamos a ponte - mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora, tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro, como devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e agora se bate nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se for acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade - e já não existe mais “terra”.

VI

Foi a confluência das dimensões simbólica e racional numa práxis ativa que me fez ver em Nietzsche um precursor daquilo que agora chamo de espiritualidade nietzscheana, e que se traduz em: a- superação do conceito de deus; b-compreensão das possibilidades do homem como criador de valores; c-superação da moral pelo uso de um código próprio de leis; d-disciplina e persistência para buscar criar um outro mundo. Como falei, essa não foi uma exclusividade nietzscheana : a gnose antiga já alertara sobre a inocuidade da moral sobre os indivíduos e salientara o fato de que o caminho espiritual era feito de exceções e não de regras, mas a gnose tinha como eixo a idéia de deus, ainda que o conceito de deus entre os gnósticos já diferisse radicalmente do conceito cristão ortodoxo. Como dizia Antonio Machado: Caminante / no hay camino / el camino se hace / al caminar.

Em um mundo renitente por aceitar as transformações que se fazem necessárias ainda encontramos, ao lado daqueles que apostam numa vida nova, livre dos antigos erros do homem, aqueles que apostam no velho mundo, de um deus fundamentalista e cego,de um deus neurótico, que não ama a vida. Num eco nietzscheano, Samael Aun Weor, fundador daquilo que ele próprio denominou de gnose moderna, no livro La Revolucion de la Dialetica falava: Somos partidarios de un politeismo moderno fundamentado en la psicotronica. (... En la Revolucion de la Dialetica, los términos bien y mal no se emplean, como tampoco los de evolucion e involucion, dios e religion... Não fora Nietzsche que dissera Que todas as coisas são batizadas na fonte da eternidade e além do bem e do mal; mas o bem e o mal mesmo não são mais que sombras interpostas, úmidas aflições e nuvens passageiras? E disse também: Noutros tempos, quando se olhava para os mares longínquos, dizía-se:”Deus”, mas agora eu vos ensinei a dizer: “Super-homem”. Deus é uma conjetura, mas eu quero que vossa conjetura não vá mais longe do que a vossa vontade criadora. Poderieis criar um Deus ? Pois não me faleis de deuses! Poderieis, contudo, criar um Super-homem? Na Gaya Cienza, Nietzsche alude ao fato que as religiões pudessem ser o prelúdio de algo muito maior que só agora começa a se esboçar.

Porque a via nietzscheana é uma via artística, e só sob a arte se resolvem as contradições do conhecimento, enquanto que a psicanálise, a psicologia profunda, o marxismo, o cristianismo e tantos outros ismos, correntes espirituais e científicas, na sua pretensão de libertarem o homem se converteram em dogmas ou em fábricas de normalidade, a filosofia nietzscheana permaneceu com seu caráter aberto de via espiritual, porque se recusou para si a imagem de um sistema ou dogma, porque tomou para si as águas do devir para um batismo próprio. Não há soluções definitivas, há o devir. Não podemos parar a música do mundo, essa é a tragédia do homem...

Um universo sem deus, sem leis e sem acaso, porque leis e acasos são antropomorfismos; a possibilidade de uma existência singular no além do homem, lembrando que o além do homem é a junção da imanência e do devir, porque o homem é uma ponte para algo maior, mas esse algo maior já está nele, in potentia; a luta por viver com dignidade, dando à vida a nossa paga, nosso presente por tudo que ela nos dá, a gratidão para com a vida, a alegria de existir, de viver : tudo isso Nietzsche viveu, não como quem exibe pomposa e academicamente suas teorias, mas do fundo trágico de sua existência, de sua desesperada tentativa de vivenciar a verdade e de sepultar o velho e falso mundo que ele conhecera. Ouvira a flauta de Dionisio e se tornara seu porta-voz: Dionisio queria mostrar a eterna alegria de existir, mesmo quando o discurso de um deus fala pela voz da loucura.


Referências Bibliográficas

NIETZSCHE, Friedrich

O Nascimento da Tragédia ( ou Helenismo e Pessimismo ) - Tradução, notas e Posfácio de Jacó Guinsburg; São Paulo: Comp.das Letras, 2000

A Gaia Ciência – Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza; São Paulo: Comp. das Letras, 2001

Além do Bem e do Mal – Prelúdio a uma filosofia do futuro – Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza; São Paulo: Comp. das Letras,2001

• Caso Wagner - Um Problema para Músicos / Nietzsche contra Wagner – Dossiê de Um psicológo - Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza; São Paulo: Comp. das Letras,1999

• Obras Incompletas - Volume das coleção Os Pensadores – Seleção de textos de Gerar Lebrun, Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; São Paulo: Ed. Abril,1996

O Anticristo – Maldição do Cristianismo – Tradução de Mário Fondelli; Clássicos Econômicos Newton, Rio de Janeiro: Ed. Newton Compton do Brasil, sd

Assim Falava Zaratustra – São Paulo: Ed. Martin Claret,2000

Ecce Homo – Tradução de Pietro Nasseti; São Paulo: Ed. Martin Claret,2000

Fragmentos Finais - Seleção, tradução e prefácio de Flávio R. Kothe; Brasília – São Paulo: Ed. UNB/IOESP,2002


MULLER-LAUTER, Wolfgang

A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche – Apresentação Scarlet Marton, tradução de Oswaldo Giacoia Jr.;São Paulo: ed. Annablume,1997

SAFRANSKI, Rudiger

Nietzsche, Biografia de Uma Tragédia - Tradução de Lya Luft; São Paulo:Geração editorial,2001

ELIADE, Mircea

Imagens e Símbolos – Ensaio sobre o Simbolismo Mágico-Religioso - Trad. Sonia Cristina Tamer, São Paulo Ed.Martins Fontes,1991

STIRNER, Max

O Falso Princípio da Nossa Educação – Tradução de Plínio de Augusto Coelho, São Paulo:Ed. Imaginário,2001

WEOR, Samael Aun

La Revolucion de la Dialetica – São Paulo: Ed.Sol Nascente, SD

CALASSO, Roberto

Os 49 degraus –Tradução de Nilson Moulin, São Paulo: Ed. Comp. das Letras,1997

HILMAN, James

Paranóia – Tradução de Gustavo Barcelos, Petrópolis: Ed. Vozes,1997





GLEDSON SOUSA nasceu em Juazeiro do norte, Ce, Brasil, em 1972. Desde 1991 vive em São Paulo. Escritor e poeta, publicou O AntiMidas – poemas (São Paulo, Ed.Jano,1998 ), Martina – Monólogo De Um Homem Para Sua Alma (São Paulo,2001 Ed. Ibis Vermelho) e O Roubo da Alma - conferência (São Paulo, 2003, ed. Autor e Sind. dos Bancários de São Paulo). Pesquisador da alquimia e das correntes esotéricas, procura a confluência de ambas nas novas formas da psicologia e na filosofia nietzscheana. Em dezembro (2003) lançará O Ovo –Meditações sobre a Semântica do Mundo (Ed. Jano).

2 comentários:

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Thx for your help!

Anônimo disse...

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