04 junho 2009

Repressão da Praça da Paz Celestial marcou a vida de ex-soldado que virou artista 3/4

The New York Times
Andrew Jacobs
Ensopado de suor, com o coração em disparada, Chen Guang desceu a escadaria do Grande Salão do Povo da China e apontou o seu fuzil automático para a multidão de estudantes que ocupavam a Praça da Paz Celestial. Chen, à época um soldado de 17 anos que morava no interior, e os seus colegas tinham acabado de receber ordens terríveis: limpar o coração simbólico do país, mesmo que isso significasse derramamento de sangue.
"Nos garantiram que não haveria consequências legais se abríssemos fogo", recordou Chen durante uma entrevista na última terça-feira (2). "A minha única esperança era que os estudantes não resistissem".

Vinte anos após as tropas chinesas terem aberto caminho a tiros no centro de Pequim, matando centenas de pessoas e ferindo muitas outras, Chen forneceu uma descrição rara da operação militar repressiva que restabeleceu a supremacia do Partido Comunista após seis semanas de protestos de massa. Uma operação que, a seguir, para a maioria dos chineses, desapareceu dos registros em uma campanha oficial para apagar o episódio da memória.

Falando publicamente pela primeira vez - e desafiando as autoridades de segurança que ordenaram que ele permanecesse calado - Chen explicou como, em 3 de junho, os soldados do 65º Grupo do Exército, usando roupas civis, infiltraram-se secretamente no Grande Salão na borda oeste da Praça da Paz Celestial. À meia-noite, com cinturões de munição cruzados sobre o peito, eles enfrentaram os manifestantes. O ar estava repleto dos cantos de protesto dos estudantes e do som de disparos de armas de fogo. "Posso assegurar que não atirei em ninguém", afirma ele.

Atualmente ele é artista e também, até certo ponto, um contestador, que mora na periferia de Pequim. Chen diz que passou os 20 anos seguintes suprimindo as memórias daquele dia. Mas no ano passado ele começou a trabalhar em uma série de pinturas baseadas em centenas de fotografias, tiradas a pedido da sua unidade militar quando ele encontrava-se na praça. Elas incluem imagens embaçadas de manifestantes invadindo um ônibus público, estudantes exuberantes fazendo uma passeata com faixas pró-democracia e soldados destruindo em fogueiras os acampamentos abandonados.

"Durante 20 anos eu tentei sepultar esse episódio, mas quanto mais velho eu fico, mais essas coisas emergem", explica ele, enquanto fuma um cigarro atrás do outro no seu apartamento. "Creio que chegou o momento de compartilhar as minhas experiências e a minha verdade com o resto do mundo".

Ao tornar públicas as suas experiências através da sua arte, Chen corre o risco de provocar as autoridades, que estão ansiosas por suprimir o debate sobre o incidente e apagar o 4 de junho da memória pública. Nas últimas semanas, à medida que se aproximava o aniversário da operação repressiva, a polícia deteve dissidentes que ela temia que pudessem atrair atenção para o 4 de junho. Na primavera passada, Zhang Shijun, um ex-soldado do norte da China, foi preso após ter dito à agência de notícias "Associated Press" que se arrependia do papel que desempenhou no esmagamento dos protestos pela democracia.

No verão passado, após as galerias locais terem se recusado a exibir os seus quadros, Chen as colocou na Internet. Porém, em uma questão de horas as imagens foram retiradas da web.

Chen, um homem franzino de voz suave e sem emoção, afirma não estar preocupado com as consequências caso se pronuncie, ainda que tenha recebido advertências para que não mostrasse os seus quadros para ninguém. "Não estou fazendo nada de errado. Só estou falando sobre as minhas experiências", diz ele.

Chen, que cresceu na província rural de Henan, como filho de um gerente de fábrica, deixou a escola secundária aos 15 anos por ser, segundo ele diz, um mau aluno. Ele queria ser artista, mas todos lhe diziam que essa não seria uma maneira prática de ganhar a vida. "A pressão da minha família tornou-se tão intensa que eu decidi me alistar no exército", conta ele. Como para se alistar é necessário ter pelo menos 18 anos, ele mentiu a respeito da idade.

Menos de um ano depois, em meados de abril, Pequim estava conflagrada pelos protestos desencadeados pela morte de Hu Yaobang, o líder do Partido Comunista que foi obrigado a renunciar para assumir a responsabilidade por aquilo que alguns líderes rivais consideravam reformas econômicas e políticas descuidadas.

Isolado no seu quartel que ficava três horas ao norte da cidade, Chen contou que ele e os outros soldados pouco sabiam a respeito dos protestos. "Só sabíamos aquilo que os oficiais militares nos diziam: que indivíduos ruins estavam tentando destruir a nação e que isso estava sendo feito com a morte de mártires", recorda o ex-soldado.

Em 19 de maio, eles receberam ordens de entrar na cidade. Mas a rota estava bloqueada por multidões de estudantes e moradores de Pequim que apoiavam os manifestantes. Durante dois dias as tropas ouviram explicações de manifestantes e foram alimentadas por eles, enquanto os líderes militares do país discutiam o que fazer.

No terceiro dia, a unidade retirou-se, mas Chen diz que o episódio o deixou confuso. "Nos disseram que aqueles eram indivíduos ruins, mas os estudantes pareciam ser honestos e francos", conta ele.

Após passarem quase duas semanas isolados no quartel, os soldados receberam trajes civis e ordens para infiltrarem-se no Grande Salão em grupos de dois ou três. Chen conta que essa missão foi bem mais enervante. Ele disse que foi o único passageiro em um ônibus com o dobro do comprimento normal cujas cadeiras foram removidas para dar lugar a armas e munições.

Famintos e apavorados, os soldados, em sua maioria adolescentes, aguardaram no interior do Grande Salão enquanto os comandantes militares, observando a situação de uma janela de segundo andar, elaboravam a estratégia de ataque. Por volta de meia-noite, a energia elétrica da praça foi cortada e os soldados desceram as escadas em direção à rua. A fim de assustar os estudantes, fazendo com que fugissem, os homens foram instruídos a atirar para o alto. A tática teve o efeito desejado.

Por volta das 2h, dezenas de milhares de estudantes choravam e cantavam a Internacional aglomerados na praça. Pouco tempo depois, veículos blindados entraram na área. Um deles investiu contra a Deusa da Democracia, uma estátua de papel machê que estudantes de arte tinham feito alguns dias antes. "Foram necessários três golpes para que a estátua caísse", contou Chen.

A maioria das mortes, segundo várias testemunhas do incidente, ocorreram nas ruas que levavam até a praça, e não na praça em si.

Menos de um ano após a operação repressiva, Chen inscreveu-se em uma escola militar de artes, e a seguir conseguiu ser transferido para a Academia Chinesa de Belas Artes. Em 1995, ele deixou o exército. Naqueles anos, Chen sentia-se atraído pela fotografia e pelas artes dramáticas, e criou um trabalho lúrido e provocante.

Ele passou meses filmando prostitutas e tirou fotos de si próprio fazendo sexo na Grande Muralha da China. Ele também produziu uma série de fotos de conteúdo sexual explícito de si mesmo posando com um velho intelectual que foi perseguido pelo Partido Comunista. "Eu desejava me retratar como um indivíduo que tinha uma conexão visceral com a tumultuada história da China", disse Chen.

Embora nenhum dos seus trabalhos iniciais diga respeito diretamente à Praça da Paz Celestial, ele afirma que grande parte deles foi influenciada pelo trauma que teve lá. "Mesmo se for difícil perceber uma conexão, tudo o que faço é motivado por aquela experiência", afirma. Chen disse que viu soldados ensanguentados devido a pedradas e um manifestante agredido por soldados com coronhadas de fuzil na cabeça.

Mas a imagem que mais o assombra é bem mundana. Quando limpava a praça naquela manhã, ele viu uma bela mecha de cabelo em forma de rabo de cavalo em meio aos restos de bicicletas esmagadas e cobertores embolados. A mecha de cabelos, amarrada com uma tira roxa, foi cortada de forma grosseira, talvez em um ato de protesto, mas possivelmente como resultado de algo mais sinistro. "Foi uma imagem chocante. Não consigo deixar de pensar naquele cabelo e no motivo pelo qual ele foi cortado", afirmou Chen.

Nos últimos meses, ele produziu uma série de auto-retratos. Em cada um deles, o seu pescoço, ombros e peito estão cobertos de fragmentos de cabelo. Ele corta o próprio cabelo uma vez a cada um ou dois anos, e depois armazena o material no seu apartamento. Até agora ele encheu o equivalente a 24 latas de café, como matéria-prima para um futuro projeto.

Ele diz que faz os seus trabalhos mais intensos todo mês de junho, mais ou menos na mesma ocasião em que é atingido por uma terrível dor de estômago. Chen conta que trata-se da mesma dor que sentiu pela primeira vez na praça.

Foi por volta desta época no ano passado que Chen decidiu rever as fotos que tirara duas décadas antes. Pouco antes do início do ataque, o comandante de Chen deu a ele uma câmera e 20 rolos de filme e lhe ordenou que tirasse fotos à vontade. Quando voltou para entregar o filme ele escondeu três rolos no bolso.

Ele diz que as fotografias o inspiraram a falar sobre um assunto que poucos na China se importam - ou ousam - em abordar. As suas pinturas são retratos artísticos da história, insiste ele, e não expressões do certo ou do errado. As imagens são em grande parte destituídas de emoções, embora Chen as tenha produzido em um tom de azul lavado e melancólico.

"Não tenho arrependimento por aquilo que fiz", afirma Chen. "Mas sinto que essa tragédia poderia ter sido evitada. Talvez se começarmos a falar sobre esse fato possamos impedir que ele volte a ocorrer".

Xiyun Yang contribuiu para esta matéria.

2 comentários:

Anônimo disse...

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Ileniel Nunes disse...

Obrigado pelo elogio...
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