02 abril 2009

O Câo Andaluz

um cão andaluz - un chien andalou - 1929 . FR . 16’
realização - Luis Buñuel
argumento - Salvador Dalí/Luis Buñuel
produção - Luis Buñuel
edição - Luis Buñuel
com
Simonne Mareuil
Pierre Batchef
Luis Buñuel
Salvador Dalí



> Un Chien Andalou, como exercício de estilo e de forma, é um cinema apontado aos sentidos. Mais sensual que cultural, onde a razão e a lógica cedem à emoção e às paixões, onde os demónios se libertam e onde o sonho e o pesadelo acontecem.

É este o percurso proposto pela articulação dos planos cinematográficos de Un Chien Andalou que, deliberadamente, violaram todas as regras de construção lógica da narrativa (sobretudo através do recurso aos então canónicos intertítulos que, neste filme em nada contribuem para a continuidade narrativa, pelo contrário, destroem-na).
Num objecto filme, feito de planos que não obedecem a qualquer lógica de continuidade
narrativa, qualquer sentido só pode ser encontrado no ecrã interior de cada espectador.

As imagens preenchem a grande tela da nossa mente, uma tela que tem a particularidade de ser reactiva. Cada jacto de luz é apontado como imagem choque para
provocar um sobressalto interior. Um despertador irritante que não se cala até fazer acordar os fantasmas adormecidos no imenso leito do nosso inconsciente.

Como imagens de catarse, capazes de expulsar, do mais escuro recanto do armário da nossa memória, os fantasmas criados pela hipocrisia da cultura institucional, burguesa, social, normativa, hierarquizada, militarizada, eclesiástica, escolástica, arregimentada, CULPABILIZADA.

Como disse Jean Vigo, a propósito de Un Chien Andalou, e depois de ter visto a célebre cena inicial, este filme deve ser visto com um olho diferente.
Como experienciação anti-social e amoral em si mesma e, por isso, profundamente reveladora dos males sociais e morais que nos afligem ao entranharem-se no mais profundo do ser individual.

Un Chien Andalou é, como proposta e provocação, um cinema libertário e de libertação. Por isso, disse Eisenstein ao ver o filme na Suiça, em Agosto de
1929, que Un Chien Andalou expunha com clareza a enorme extensão da desintegração da consciência burguesa.

Teatro da crueldade para contracenar com um mundo estigmatizado pelos horrores de dois conflitos mundiais que nos obrigam a descobrir os elevados níveis de irracionalidade a que pode chegar o género humano.

Com esta visão sombria do estado global da grande nação burguesa o humor só pode ser negro e corrosivo. Assim se explicam algumas das obsessões de um Buñuel desconcertante que afirma “As pessoas são imbecis mas a vida é divertidíssima!”.

E foi deste modo, divertido, que o cineasta espanhol terá compreendido a homenagem
que os seus conterrâneos de Calanda, em Aragão, lhe quiseram prestar ao atribuir, solenemente, o nome de Buñuel a uma rua da localidade. Diz Buñuel que, quando em pequeno aí morava, se divertia a chamar “Calle de la mierda” a essa mesma rua.

Un Chien Andalou é a provocação que nos obriga a sentir que ainda estamos vivos. Como
experienciação individual não partilhável, não comunicável, mas profundamente sentida – visceral, intestina e profundamente sensual (não é por acaso que Buñuel escolhe um Tango, na versão musicada dos anos 60, para conseguir ampliar a representação simbólica do desejo).

Ora, é precisamente nesta dimensão de apelo aos sentidos que se insere o trabalho de Victor Afonso. A banda sonora original, que as imagens de Buñuel lhe suscitaram, surge como um resgate do espaço sonoro, como se aquelas imagens estivessem aprisionadas no território hegemónico do visível e pudessem finalmente respirar.
Victor Afonso alcança o ritmo natural da respiração dessas imagens. Respiração ora sobressaltada, intensa e ofegante; ora suspensa, contida e profunda.

Como proposta de respiração é algo que não se consegue ver separado desse corpo filme. Talvez por isso, muitos segmentos funcionem como uma amplificação do visível mais do que por dissonância, contraponto ou paradoxo (não foi por acaso que Buñuel escolheu Wagner para a versão musicada dos anos 60).
Victor Afonso consegue ainda explorar, através do som (e este é um dado novo que importa referir), a vertente humorística que sempre caracterizou os surrealistas. E fá-lo, uma vez mais, como amplificação do visível.

Mas, justamente, por este efeito de amplificação se actualiza o efeito de surpresa e de choque que era pretendido pela dupla Luís Buñuel / Salvador Dali.
É urgente, também agora, acordar a consciência das pessoas gritando-lhes aos sentidos. Porque, de facto, o olho diferente de que falava Jean Vigo parece ter adquirido uma espécie de estigmatismo irrecuperável depois dos horrores e atrocidades de guerras: mundiais, regionais, cirúrgicas...
Cataratas de insensibilidade ajudaram a construir uma carapaça de total indiferença.
Já nada nos consegue chocar?

texto retirado de http://www.labcom.ubi.pt/cinubiteca/pdf/planocorte06.pdf

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