10 maio 2009

Charles Bokowski


Os 25 melhores poemas de Charles Bukowski foi um dos últimos trabalhos de Jorge Wanderley. É um bom livro. Lendo-o, impressiona por manter em português o mais característico da obra de Bukowski: a informalidade, o aparente desleixo de linguagem, o registro baixo que emerge de súbito e salta à cara do leitor, bem como o imprevisto lirismo que surpreende com o sinal oposto. Principalmente, ressalta o difícil equilíbrio desses registros, a combinação própria, que dá o sabor específico da poesia e também da melhor prosa de Bukowski.

Há muitas maneiras de avaliar uma tradução. E há mesmo, sobre tradução, muito debate e acirradas divisões em vertentes teóricas. E, como muitas vezes acontece, essas discussões alimentam não apenas revistas especializadas, mas ainda podem ramificar-se em importantes divisões acadêmicas que, em casos extremos, fundam, fendem ou fundem departamentos inteiros.

Sem querer disputar com os especialistas nem o jargão, nem a base de fundamentos ou de crenças, muito particularmente julgo que uma boa tradução é aquela que mais prescinde do original. Aquela na qual o tradutor encontra uma forma de dizer que basta por si mesma.

É claro que um bom livro de poemas traduzidos deve trazer, lado a lado, o texto de base e o texto traduzido. Isso funciona mais ou menos como uma garantia, um gesto de confiança e de generosidade. O leitor pode comparar, pode ler verso a verso em uma e outra língua, pode ler aos blocos, poemas inteiros, em sucessão. Se gostar da tradução, fica com ela; se não gostar, sempre tem ao lado o texto na língua em que foi primeiramente escrito.

Mas o que me parece o triunfo do tradutor é aquele momento no qual, depois de conferir, meio desconfiado, alguns tantos versos e poemas, e percebendo a propriedade ou a coerência das escolhas, o leitor percorre apenas o texto na sua própria língua, para ver como soa aquele poeta na língua que não era dele, mas que é a do leitor. Para ler, afinal, uma interpretação.

Nesse sentido, é uma alegria, para os amantes do velho Hank, tê-lo assim tão carinhosamente vertido para o português (e charmosamente editado, da capa ao miolo).

É certo que um exame atento pode levar a concluir que o Bukowski-Wanderley é mais homogêneo em termos de linguagem. Os coloquialismos e a imitação de linguagem oral, presente em vários versos dos poemas escolhidos, acabam recebendo uma veste mais padronizada. Não há violência lingüística, nos textos de Wanderley. E em alguns momentos, a impressão é a de que a linguagem de Bukowski sofre mesmo alguma elevação de tom.

No geral, porém, a operação de leitura é coerente e produz um texto harmônico. Dá-se algo parecido a uma canção, quando é transposta de tom. A mudança é sensível na modulação, mas o resultado conserva o desenho das frases, e o conjunto soa bem.

Os pontos que poderiam ser objeto de maior reparo são poucos. Há algumas rimas a mais, o que dá ao texto às vezes um caráter bastante diferente do que tem em inglês. O caso mais notável é o da tradução destes versos: "I cannot rhyme./I am too tired to/ steal". Em português, ficou assim: "não sei rimar./estou cansado demais para/roubar". Se a assonância rhyme/tired encontrou equivalente adequado em rimar/demais, a inclusão da palavra "roubar" torna o terceto uma contradição em termos, pois em português o poeta diz, rimando, que não sabe rimar... O que é o mesmo que dizer que na nossa língua temos um verso sarcástico, enquanto em inglês temos um verso apenas plano.

Há uma oscilação na hora de traduzir, ao longo do livro, algumas palavras repetidas. O caso mais flagrante é o de uma palavra cara ao poeta, whore. No poema "Entrevistado por um ganhador do Guggenheim", lemos "esse sul-americano ganhador de um Gugg/ entrou aqui com a prostituta dele"; logo abaixo, a mesma palavra já é traduzida por "puta", da mesma forma que no poema "Muito", onde lemos "é como uma cave, isso aqui:/cheia de morcegos e putas". Nos três casos, em inglês temos a mesma palavra. E a mim me parece claro que, no primeiro caso, a palavra deveria ser a mais chula, inclusive porque o ritmo ficaria mais adequado, pois em inglês o segundo verso é sensivelmente mais breve do que o primeiro; e em português, além de próximo da extensão do primeiro, resultou um verso de medida clássica, um sáfico, cujo efeito aqui parece pouco adequado.

É preciso considerar, na hora de fazer reparos, que as traduções talvez não tenham tido uma revisão final do autor. Uma última leitura talvez eliminasse, por exemplo, no belo "The last generation", o que me parece um problema na tradução do verso "many others broken in victory". Em português, ficou: "muitos outros falidos na vitória”". Como o título foi traduzido por "A geração falida", cria-se, a meu ver, um problema com a utilização do mesmo termo português para "last" e "broken", porque quem lesse o texto apenas em nossa língua tenderia a ler o verso acima como o centro de força do poema. O que não é verdade. Ao menos, não como seria se a palavra do título, que é um trocadilho com a denominação "lost generation", também aparecesse nesse verso, junto com a palavra "vitória". E, sem dúvida, uma releitura cuidadosa eliminaria uns poucos tropeços maiores, como o do verso "and she has been looking for a job", de "Conversa às três e meia da madrugada", que resultou num insustentável "e ela tem estado procurando emprego"...

Quanto à escolha dos poemas, dada a vastidão da obra poética de Bukowski, não posso dizer muito. Wanderley recolheu os poemas que traduziu de três livros: uma seleção dos melhores poemas, publicada pela primeira vez em 1960, uma coletânea da primeira parte da década de oitenta e o volume The Last Night of the Earth Poems, de 1992. Por certo, a apresentação de apenas 25 poemas sob esse título valorativo é uma aposta arriscada. Como todas as apostas das antologias, é certo. Mas aqui, dada a exígua dimensão do conjunto, o peso e o risco da seleção dos "melhores" parecem muito grandes.

Num prefácio comovido, que apresenta o sentido desse livro na vida de quem o traduziu, Márcia Cavendish Wanderley explicita o princípio e a opção: "Jorge Wanderley viu no bardo marginal uma reprodução de si próprio, dividido entre o permitido e o proibido, essa linha tênue que nos persegue em vida, condenando-nos ao banal ou elevando-nos ao epifânico".

É certo que quase tudo que li de Bukowski ressalta a epifania que brota da banalidade, da sujeira e do rebaixamento. Mas não em toda parte encontramos o momento de revelação do desejo de ternura, ainda que impossível, e a cedência ao humor como redenção parcial e afetiva, numa síntese precária. No mais das vezes, o texto de Bukowski cristaliza um momento de frustração absoluta, da entrega ao destino sem futuro nem elevação. 

Mas os termos da dicotomia formulada no prefácio são adequados para compreender o movimento desta antologia. E se existe um critério a orientar a seleção, sem dúvida ele consiste na busca de poemas que operam mais claramente essa elevação ao epifânico. E por poemas nos quais o tom sentimental tenha um lugar importante.

É uma escolha. E sendo uma escolha derradeira, esse conjunto de traduções que se publica, póstumo, se deixa ler como um testamento e como uma consolação.

Os 25 melhores poemas de Charles Bukowski.

Edição bilíngüe com tradução de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2003.

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O Gato e a Humanidade

“Havia um gatinho branco com as costas voltadas para um dos cantos do muro. Não podia subir pelos tijolos nem fugir em qualquer outra direção. Suas costas estavam arqueadas e ele bufava, as garras prontas. Era, no entanto, pequeno demais para dar conta do buldogue de Chuck, Barney, que rosnava e se aproximava mais e mais. Tive impressão de que aquele gato havia sido colocado ali pelos garotos e de que somente depois o buldogue fora levado até ali. Sentia isso intensamente pelo modo que Chuck e Eddie e Gene acompanhavam a cena: o aspecto deles os incriminava.

- Caras, vocês armaram essa – eu disse.

- Não – rebateu Chuck –, a culpa é do gato. Ele veio até aqui.

- Deixe que ele se vire agora para escapar.

- Odeio vocês, seus desgraçados – eu disse.

- Barney vai matar o gato – disse Gene.

- Barney vai fazer picadinho do bichano – disse Eddie. – Ele está com medo das unhas do gato, mas quando avançar estará tudo encerrado.

Barney era um buldogue grande e marrom com as bochechas flácidas e cheias de baba. Ele era gordo e meio abobalhado e tinhas olhos castanhos inexpressivos. Rosnava constantemente e ia avançando devagar, os pelos do pescoço e das costas eriçados. Eu sentia vontade de lhe dar um chute no seu rabo estúpido, mas percebi que ele arrancaria minha perna fora. O cão estava completamente tomado por um espírito assassino. O gato branco sequer tinha terminado de crescer. O bichinho soltava um silvo agudo e esperava, comprimido contra o muro, uma criatura belíssima, tão limpa.

O cachorro avançou lentamente. Por que esses caras precisavam disso? Não era uma questão de coragem, era apenas um jogo sujo. Onde estavam os adultos? Onde estavam as autoridades? Para me acusar de alguma coisa estavam sempre por perto. Onde tinham se enfiado agora?

Pensei em intervir na cena, apanhar o gato e sair correndo, mas eu não tinha forças. Tinha medo de que o buldogue me atacasse. A consciência de que me faltava coragem para fazer o que era necessário fez com que me sentisse péssimo. Comecei a ficar enjoado. Estava fraco. Eu não queria que aquilo acontecesse, ainda que eu não conseguisse encontrar nenhuma maneira de evitar o massacre.

- Chuck – eu disse –, deixe o gato ir, por favor. Chame seu cachorro.

Chuck não respondeu. Continuou apenas observando. Então disse:

- Vai, Barney, pegue ele! Pegue o gato!

Barney avançou e de súbito o gato deu um salto. O bicho se transformara numa furiosa mancha branca, toda silvos, garras e dentes. Barney recuou e o gato voltou novamente para o muro.

- Pegue ele, Barney – disse Chuck novamente.

- Cale a boca, maldito! – gritei para ele.

- Não fale comigo desse jeito – retrucou.

Barney começava a avançar novamente.

- Caras, vocês armaram tudo isso aqui – eu disse.

Ouvi um leve ruído atrás de nós e voltei a cabeça. Vi o velho sr. Gibson a nos observar de trás da janela de seu quarto. Ele também queria que o gato fosse morto, assim como os garotos. Por que?

O velho sr. Gibson era nosso carteiro. Usava dentadura. Tinha uma esposa que passava o tempo inteiro em casa. A sra. Gibson sempre usava uma rede sobre os cabelos e sempre trajava uma camisola, roupão de banho e chinelos.

Então apareceu a sra. Gibson, vestida como de costume, e se postou ao lado do marido, esperando pela carnificina. O velho sr. Gibson era um dos poucos que tinha um emprego, mas ainda assim ele precisava ver o gato morto. Gibson era como Chuck, Eddie e Gene.

Havia muitos deles.

O buldogue se aproximou. Eu não podia ver aquele crime. Senti uma vergonha profunda por abandonar o gato à própria sorte. Havia sempre a chance de que o bichano pudesse escapar, mas eu sabia que os garotos não deixariam isso acontecer. Aquele gato não enfrentava apenas o buldogue, ele enfrentava a humanidade inteira.

Dei meia-volta e me afastei, para fora do quintal, passando pela entrada do carro e chegando ã calçada. Caminhei em direção ao local onde eu morava e lá, no pátio em frente ã sua casa, meu pai estava plantado, me esperando.

- Onde você estava? – ele perguntou.

Não respondi.

- Já pra dentro – ele disse. – E pare de parecer tão infeliz ou lhe darei algo para que você realmente sinta o que é infelicidade!”

.

[Do livro “Ham on Rye” – Charles Bukowski (tradução de Pedro Gonzaga)]

.

Quando criança, passei por diversas situações semelhantes a essa, contada por Bukowski. E eu, garoto raquítico e chorão, não podia fazer nada para impedir as maldades dos outros garotos. Isso é apenas uma das dificuldades pelas quais passa um bom garoto que é obrigado a crescer numa cidade pequena, cheia de caipiras e selvagens. É possível que esta seja a razão do meu pouco apego com crianças, nos dias atuais.

Felizmente, anos mais tarde, quando eu já era um adolescente revoltado, pude ter minha vingança. Eu voltava do colégio, quando vi um desses lutadores de jiu-jitsu atiçando um pitbull num gato preto e branco, que gemia em cima de uma árvore baixa. Isso não ficaria assim, eu não poderia deixar outra atrocidade acontecer – eu já não era mais um moleque indefeso.

O tijolo acertou o lado esquerdo da cabeça do cachorro. Ele não morreu, mas tombou e ficou chorando, enquanto eu… Bem, eu já não era mais criança e sabia muito bem que enfrentar um lutador de jiu-jitsu é suicídio. Então corri. Estou correndo até hoje. (nota: eu não odeio cães, gosto deles, mas nesse caso, não era um cão e sim uma fera contaminada pelo caráter ruim de seu dono).

Esse texto de Bukowski, “O Gato e a Humanidade”, é um dos melhores exemplos da humanidade do escritor. Pena a maioria de seus leitores buscar exclusivamente a pornografia em seus livros e ignorar esse lado humano e sua compaixão pelos menos favorecidos, que é a alma de sua obra.





Conversa às Três e Meia da Madrugada

às três e meia da madrugada
a porta se abre
e há passos na entrada
que trazem um corpo,
e uma batida
e você repousa a cerveja
e vai ver quem é.

com os diabos, ela diz,
você não dorme nunca?

e ela entra
com o cabelo nos rolinhos
e num robe de seda
estampado de coelho e passarinho

e ela trouxe a sua própria garrafa
à qual você gloriosamente acrescenta
2 copos;
o marido, ela diz, está na Flórida
e a irmã manda dinheiro e vestidos para ela,
e ela tem estado procurando emprego
nos últimos 32 dias.

você diz a ela
que é um cambista de jóquei e
um compositor de jazz e canções românticas,
e depois de uns dois copos
ela não se preocupa com cobrir
as pernas
com a beira do robe
que está sempre caindo.

não são pernas nada feias,
na verdade são pernas ótimas,
e logo você está beijando uma
cabeça cheia de rolinhos,

e os coelhos estão começando a
piscar, e a Flórida é longe, e ela diz
que não somos realmente estranhos
porque ela tem me visto na entrada.

e finalmente
há muito pouca coisa
para dizer.


Poema nos meus 43 anos

Terminar sozinho
no túmulo de um quarto
sem cigarros
nem bebida —
careca como uma lâmpada,
barrigudo,
grisalho,
e feliz por ter
um quarto.

... de manhã
eles estão lá fora
ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores, médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carro,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiros,
motoristas de táxi...

e você se vira
para o lado esquerdo
pra pegar o sol
nas costas
e não
direto nos olhos.

Um poema de amor

todas as mulheres
todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.

suas orelhas elas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.

principalmente
as mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga
derretida
nela.

há uma aparência
no olho: elas foram
tomadas, foram
enganadas. não sei mesmo o que
fazer por
elas.

sou
um bom cozinheiro, um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar — eu estava ocupado
com coisas maiores.

mas gostei das camas variadas
lá delas
fumar um cigarro
olhando pro teto. não fui nocivo nem
desonesto. só um
aprendiz.

sei que todas têm pés e cruzam
descalças pelo assoalho
enquanto observo suas tímidas bundas na
penumbra. sei que gostam de mim algumas até
me amam
mas eu amo só umas
poucas.

algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;
outras falam mansamente da
infância e pais e
paisagens; algumas são quase
malucas mas nenhuma delas é
desprovida de sentido; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
são as melhores em
outras coisas; todas têm limites como eu tenho
limites e nos aprendemos
rapidamente.


todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos de dormir
os tapetes as
fotos as
cortinas, tudo mais ou menos
como uma igreja só
raramente se ouve
uma risada.

essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto e a
carência me
sustentaram, me
sustentaram.


Confissão

esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama

sinto muita pena de
minha mulher

ela vai ver este
corpo
rijo e
branco

vai sacudi-lo e
talvez
sacudi-lo de novo:

“Henry!”

e Henry não vai
responder.

não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.

no entanto,
eu quero que ela
saiba
que dormir
todas as noites
a seu lado

e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas

e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora
ser ditas:

eu
te amo.


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